NOTA SOBRE AS ANULAÇÕES DA COMISSÃO DE ANISTIA

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Na data de ontem, 08 de junho de 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos publicou no Diário Oficial da União uma série de portarias anulando portarias anteriores de declaração de anistia política.

O importante para entender essa situação é responder à pergunta: a Portaria 1.104/GM3/1964 é ou não é um ato de exceção?

O que é a Portaria 1.104/64? É basicamente a restrição para o engajamentos e reengajamentos na carreira militar, limitando a carreira dos cabos a oito anos de serviço.

Quando a Comissão de Anistia foi criada, em agosto de 2001, inúmeros requerimentos dos chamados ex-cabos da FAB foram protocolados para apreciação da Comissão. Para uniformizar os julgamentos, o então presidente da Comissão submeteu ao Plenário em 2002 a matéria, e a partir daquele consenso foi promulgada a Súmula Administrativa n.º 2002.07.0003, que classificava a Portaria 1.104/64 como ato de exceção. A partir deste momento, todos os requerentes que demonstravam que haviam sido licenciados da Força por aplicação da Portaria 1.104/64 tinham seu requerimento de anistia política deferido.

Ocorre que o Ministério da Defesa nunca admitiu que este entendimento prevalecesse. E a partir de 2003 uma série de debates e pareceres dentro da Administração Pública Federal passaram a discutir o assunto. A posição do Ministério da Defesa e da Advocacia Geral da União sempre foi de que a Portaria 1.104/64 não foi um ato de exceção, mas apenas um ato administrativo de reorganização da carreira militar. Até então, a da Comissão de Anistia era de que tinha sido um ato de exceção, e qualquer que tivesse sido alcançado por ele deveria ser anistiado.

A partir de 2004, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos determinou a instauração de 495 processos de anulação de portarias de anistia política, por ter se consolidado na própria Comissão de Anistia o entendimento que apenas faziam jus à declaração de anistia política aqueles que haviam ingressado na Força antes da expedição da Portaria 1.104/64, pois aqueles que haviam ingressado após a Portaria não poderiam alegar que tinham sido atingidos por um ato de exceção, porque quando do ingresso já estavam subordinados às restrições que esta Portaria criou, ou seja, já era vigente a regra de limite a oito anos de serviço militar. Houve, assim, perto de 500 anulações de portarias, e a partir de então, o entendimento de que se a pessoa houvesse ingressado antes da Portaria, seria anistiado, e se tivesse ingressado depois, somente teria a declaração de anistia política caso comprovasse outra perseguição política que não fosse a mera vigência da Portaria 1.104/64.

Mas este entendimento ainda não era suficiente para o Ministério da Defesa e outros órgãos da Administração Pública, e o debate continuou. Em 2006 a CGU elaborou uma Nota recomendando que este entendimento fosse afastado, sem sucesso. As diferentes composições da Comissão da Anistia ao longo dos anos acabaram por relativizar este entendimento, que passou a ser apenas majoritário, ou seja, dependendo da composição das turmas de julgamento, os Conselheiros entendiam que a Portaria era ou que não era ato de exceção. Entre 2010 e 2011 AGU, TCU e CGU pressionaram para que houvesse anulação das anistias concedidas exclusivamente com base na aplicação da Portaria 1.104, mas isso não aconteceu. Então em 2011 foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial de Revisão, composto por integrantes do Ministério da Justiça e da CGU. O GTi deliberou pelas anulações, mas esbarrou no impedimento jurídico da decadência, ou seja, a União não teria mais o direito de anular aquelas anistias após tantos anos por terem transcorridos mais de cinco anos do primeiro pagamento. Houve decisões do STJ, reconhecendo a decadência, e o GTi foi suspenso.

Em 2017, com uma nova composição da Comissão de Anistia, em função das mudanças ministeriais, e tendo como Ministro da Justiça Torquato Jardim, houve uma sessão administrativa da Comissão que revogou a Súmula de 2002, que afirmava que a Portaria 1.104 era ato de exceção. Esta revogação foi motivada pelas decisões conflitantes da Comissão, em número cada vez maior, pois dependendo de quem estava apreciando os casos, ora prevalecia o entendimento da jurisprudência da Comissão, ora o entendimento de que sem outras provas de perseguição não havia razão para anistia política.

O STF já havia se manifestado sobre o tema dos ex-cabos da FAB para corrigir um enquadramento na carreira daqueles que tinham sido anistiados, e acompanhava o entendimento da Comissão de Anistia quanto ao marco temporal do ingresso na FAB, se antes (com direito à anistia) ou depois (sem direito à anistia) da Portaria 1.104. As duas Turmas do STF também tinham o entendimento de que a Administração Pública não poderia revisar as anistias dos ex-cabos da FAB após transcorrido o prazo decadencial.

Esse entendimento prevaleceu até outubro de 2019, quando o Plenário do STF julgou um recurso extraordinário com repercussão geral, no qual foi afastada a decadência, por entender, num placar apertadíssimo de 6×5, que a Portaria não teria sido um ato de exceção, e, portanto, a concessão de anistia seria inconstitucional. É curioso notar que o Relator desse processo, Ministro Dias Toffoli, teve no seu quadro de assessores o atual Ministro da Defesa e que as agendas públicas dos Ministros do STF mostram que os magistrados que votaram contra os anistiados receberam este Ministro da Defesa e outros militares para tratar desse julgamento.

Deve ser observado ainda que desde o início de 2019 já estava configurada uma nova Comissão de Anistia, agora não mais sob a pasta do Ministério da Justiça, e sim da Mulher, Família e Direitos Humanos. Esta nova Comissão de Anistia desde o início de suas atividades entendia que a Portaria não era ato de exceção. Aliás, entendia e entende que não houve estado de exceção no Brasil e que os terroristas (como muitas vezes são chamados durante as apreciações dos requerimentos) que pleiteiam a declaração de anistia política raríssimas vezes têm razão.

Vale acrescentar que, ao afastar o prazo decadencial, o STF decidiu que a Administração Pública poderia revisar os atos concessivos de anistia, desde que fosse respeito o devido processo legal e a ampla defesa. Como era de se esperar, o devido processo legal e a ampla defesa foram desobedecidos pela Administração.  Na verdade, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos apenas lançou uma nota genérica, na qual abria um prazo de dez dias para uma defesa igualmente genérica. Não houve indicação prévia das razões que afastariam a condição de anistiado político suficientes para autorizar a revisão do ato, tampouco foi dada a oportunidade de produção de provas e menos ainda foi respeitado o rito da lei do processo administrativo.

As anulações que agora acontecem foram viabilizadas, em parte, pela decisão do STF, que afastou o anterior empecilho da decadência. Mas só aconteceram porque a atual Comissão de Anistia, que se resumiu a uma comissão de governo e não de Estado, entende que não houve estado de exceção, e por consequência, não houve atos de exceção.

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